“De todos os assuntos de que participamos com maior ou menor interesse, a busca às cegas de uma nova maneira de viver é a única questão que continua sendo apaixonante.”
Guy Debord
A apreensão do conceito de realidade parte de seu entendimento como propriedade do existente. Seja perceptível, acessível ou considerada mera ilusão, tudo o que existe é real e verdadeiro em si mesmo; embora, muitas vezes a realidade não passe de palavras. A questão que persiste é a análise da realidade como uma verdade constante ou como um fluxo em permanente mutação.
A partir da relativização do espaço com respeito ao ponto de vista do observador, a idéia de espaço e tempo absolutos é questionada, permitindo supor o entendimento da realidade como algo mais flexível, ou seja, fatos são verdadeiros a partir de uma construção sistêmica do mundo, dentro de um sistema diferente as análises poderiam ser diferentes. Dessa forma, a realidade não é absoluta, nem universal.
Existem diferentes percepções da realidade que se baseiam em um sistema analítico complexo por sua subjetividade, dessa forma aguçar a percepção pode se tornar um meio de potencializar uma transformação efetiva da realidade. Cabe descobrir formas de colocar as percepções em movimento.
O movimento transforma a possibilidade em ato, modifica uma natureza, muda a perspectiva. Assim, o deslocamento no espaço marca o tempo, sendo por este compassado e dessa forma gera momentos, situações e novamente outros movimentos. Novas referências se constituem, algo pequeno se torna enorme dependendo do ponto de observação e de seu referencial.
É perceptível, contudo, como outra experiência física – a velocidade, conjugada ao movimento tem induzido à passividade. A aceleração do movimento diminui o tempo dos deslocamentos permitindo ao indivíduo percorrer áreas mais extensas, mas com conseqüências graves: os lugares se tornam espaços de passagem, com os quais não há vinculação, reforçando a desconexão física dos indivíduos com os espaços que vivenciam. Assim, o ambiente urbano contemporâneo é construído dentro de paradigmas que potencializam a passividade, a monotonia e o cerceamento tátil, o que só contribui para a sua estaticidade.
A experiência física da velocidade modifica a natureza do movimento, tornando-o autônomo, contudo, este se estimulado pode manter sua capacidade transformadora. Um dos elementos que tem potencial dinamizador é ainda a Utopia, pois se configura como uma possibilidade, ou seja, é possível quando ultrapassados os obstáculos objetivos, porém provisórios, que interferem na sua concretização. Assim, a Utopia tem a capacidade de se materializar através da ação transformadora dos homens.
Se a possibilidade se transforma em ato através do movimento, uma atitude crítica frente à realidade e uma exploração das possibilidades podem movimentar a sociedade para a construção utópica. Thomas More em sua ‘A Utopia’ não descreve um mundo fantástico baseado em leis irreais ou inacessíveis, pois dessa forma apesar de construir um argumento crítico à sociedade de sua época não estaria oferecendo possibilidades alternativas para a construção de uma realidade diferente da que criticava.
Sua crítica se baseia na transformação social assentada em critérios racionais para alcançar a desejada sociedade livre constituída por homens livres, o que é absolutamente possível em qualquer época e sociedade. Na sociedade pensada por More, os efeitos degradantes do trabalho socialmente necessário são repartidos por todos os membros da sociedade de maneira equitativa, assim como os bens sociais, o que não permite a instalação de uma classe oprimida.
Dois aspectos dessa sociedade utópica geram espacial interesse por sua analogia com os aspectos emergentes da sociedade atual. O primeiro surge como um postulado óbvio: não permitir a compra irrestrita da terra como forma de minimizar a especulação e o monopólio, assim haveria um limite determinado de solo, além do qual ninguém poderia possuir. Em seguida More avança apresentando o segundo postulado, segundo o qual a distribuição justa das riquezas entre os indivíduos é impossível sem a extinção do conceito de propriedade.
Passados cinco séculos, sendo os dois últimos baseados em discursos progressistas e na modernização, a questão não podia ser mais pertinente. A conformação da vida cotidiana se conecta diretamente à relação entre espaço e poder, tornando claro como a arquitetura e o urbanismo tem a capacidade de reproduzir uma ordem social, legitimando-se através da neutralidade técnica.
A análise da realidade exige a mudança de paradigmas da arquitetura. Sérgio Ferro contribui nesse sentido, ao afirmar que diante da percepção que a uma parcela significativa, senão majoritária da população, o acesso à terra e à habitação é negado, os arquitetos devem estabelecer uma nova postura em relação a sua prática profissional e à cidade.
O Estatuto da Cidade regulamenta o capítulo original aprovado pela Constituição de 1988 que instaura o conceito de função social da propriedade, ou seja, o direito de propriedade imobiliária urbana é assegurado desde que cumprida sua função social, o que a princípio equilibraria os interesses individuais e coletivos. Apesar do avanço, é observável que a organização material das cidades continua atrelada, sobretudo à valorização do capital. Isso no contexto da mudança dos paradigmas da gestão urbana, do tradicional gerenciamento para o que Harvey chama de empresariamento, que em última análise preconiza a competição entre as cidades, baseada principalmente na sua “espetacularização”.
A arquitetura e o urbanismo desprovidos de coerência técnica ou artística se tornam elementos de legitimação da ideologia vigente, que entre outras coisas procura explicar a emergente crise urbana como falta de planejamento, o que de forma alguma explica a complexidade da conjuntura atual.
A necessidade de formas alternativas de produção do espaço remete à “poética da economia” que o grupo ‘Arquitetura Nova’ praticou durante a década de 1960. A partir da discussão sobre o papel social do arquiteto, as relações de produção dentro do canteiro de obras e as técnicas construtivas tradicionais, empreenderam em experiências construtivas cuja simplicidade teria o potencial de aumentar a produtividade e o acesso à arquitetura.
Para o ‘Arquitetura Nova’ a dimensão estética está vinculada aos efeitos que uma técnica pode inferir aos indivíduos, ou seja, está atrelada à necessidade objetiva que a impulsiona. Surge assim uma nova linguagem baseada na eliminação de todo supérfluo, uma arquitetura do absolutamente indispensável, que dessa forma, se torna também indispensável.
Nesse contexto, a produção da arquitetura passa a exigir simultaneidade em detrimento da sucessão de processos isolados, a partir da fluidez, a arquitetura se torna um processo integral, cujo interesse não se resume ao objeto final construído, mas a um processo de coletivo de produção.
A arquitetura, portanto, não deve ser concebida como um projeto cuja função é simplesmente ligar um conjunto de espaços estáticos, mas como um organismo em movimento composto por múltiplas interações que demandam de desejos e aspirações. Assim, a arquitetura é gerada através do movimento e nunca se torna estática, uma vez que sustenta o fluir das pessoas, deriva do mundo das idéias aplicada ao mundo material, portanto, movimentar-se na arquitetura pode fazer com que a arquitetura se movimente dentro de referenciais diferentes dos preconizados.
Novas formas de apropriação do espaço devem ser concebidas, ou velhas formas assimiladas. Possibilidades de mobilidade na arquitetura já existem, seja através do nomadismo tradicional das Yurt, uma tenda redonda de origem mongol, um povo nômade, mas que hoje tem sido muito utilizada como habitação rural na Europa pela economia que sua construção propicia; ou do nomadismo utópico do país que More vislumbra, onde seus habitantes fazem partilhas periódicas dos espaços que habitam, trocando de casa a cada dez anos como forma de abolir a idéia de propriedade individual e absoluta. Enfim, seja casa, tenda ou circo, seja fixa ou itinerante, a arquitetura se movimenta se a sociedade se permite o movimento. E apesar da palavra “utopia” significar em grego “em lugar nenhum”, ela é real, cabe agora espacializá-la.
“um mapa do mundo em que não aparece o país Utopia não merece ser guardado”
Oscar Wilde